Em 1992, terminada a grande guerra, eu me enamorei de um homem que tinha por ocupação tirar fotografias. Não se tratavam daquelas posadas, como as do século XIX, antes da modernização técnica das câmeras e seus obturadores até então demasiadamente lentos. Ele produzia imagens das coisas do mundo em movimento, como se um único golpe de vista fosse capaz de fazer estacionar o tempo e capturar uma partícula única de uma extensa narrativa que não se traduz pela lógica do início, meio e fim, linear e determinista, e sim no intervalo, misterioso intervalo, situado entre o passado e o futuro. Entre o sim e o não. No rasgo da vida – que por coincidência é o meu lugar predileto.
No período em que estivemos juntos fui muito feliz, ou melhor, fui um recipiente cheio até as bordas de toda a inspiração necessária para viver aqueles dias ordinários de maneira intensa e destituída de aforismos de cabine telefônica. Ou de portas de banheiro. Ou de discussões inanimadas entre sujeitos de cátedra. Porque, como escritora, eu também facilmente sucumbia à sedução das regiões arrogantes e morais do discurso, então ter por amor um fotógrafo obrigava-me a rever, re-ver, ver novamente e sem ênfase bibliográfica minhas revelações. É isso que o olhar fotográfico faz com os amantes, ostensivamente se torna a única ferramenta possível de humanidade diante das coisas sem humanidade. Os fotógrafos são assassinos, roubam a vida de suas vítimas paralisando-as no tempo e no espaço de um retângulo de dez por quinze centímetros, reproduzível, ampliável e incerto no que diz respeito à verdade.
Observá-lo fotografar era atitude também criminosa, eu me fazia comparsa de uma cena melodramática: de nossa sacada ele enxergava o alvo, apanhava a câmera e organizava o próprio corpo em favor dela, e fundiam-se como se fossem órgãos suplementares um do outro, membros enrijecidos tomados pela irrigação sangüínea de um momento excepcional e excitante. A previsão da imagem não passava de intuição e a câmera se encarregava de lhe ser o meio laboratorial da tentativa, da fantasia, do erro. Os dois se examinavam profundamente, olho na lente, olho no olho, lente no olho. Ali, naquele momento, o que estava em jogo não era o resultado da façanha, mas o próprio ato do fracasso. O erotismo fibroso da intenção fotográfica, arbitrária, e por consequência tão livre.
Eu também quis construir contos como fotografias, desenredar palavras à luz de pressupostos ópticos, criar paisagens com pontos de fuga para que o leitor pudesse desejar fazer delas o seu destino. Nesse ínterim me desapaixonei, nos desapaixonamos, sem muito sangrar.
O amor também pode se tornar tão vago.
Sob o jugo de qual cinzenta e vesga manhã de domingo o romance se desintegra?
Achei em suas coisas uma foto minha, sentada na cadeira de balanço da casa da Cesária, rindo e olhando para baixo, com os cabelos curtinhos. Sob os olhos algumas rugas de expressão alegre e apreensiva, como se segundos depois eu fosse me dar conta de algo realmente importante e grave, sucedendo a cadeia de acontecimentos com um corte de humor terrível a levar todos os presentes na ocasião a um mal estar intangível. Eu, convidada desagradável, eternamente prensada entre início e o desfecho, sepulta cretina na cadeira de balanço que, fatalmente, não balança.
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O Liberal Jornal – 05.07.2017